Tanto eu, António Saint Silvestre, como Richard Treger, nascemos a Sul do Equador, no continente Africano, respectivamente no Moçambique e em Zimbabué. O Richard, judeu ashkenazi de origem lituana por parte do pai e irlandesa por parte da mãe, foi educado segundo a tradição Vitoriana, originária do Império Britânico, e eu, de origem luso-italiana, educado segundo uma tradição católico-romana, fui influenciado pelo charme da cultura mestiça do Império Português. Mas, então, o que haverá de comum entre um pianista zimbabueano e um escultor moçambicano com origens tão diferentes? África, certamente!
O mais fabuloso dos continentes, que soube guardar a sua verdade apesar de terríveis guerras internas, de massacres que fizeram correr rios de sangue, de invasores ávidos e desenvoltos, dos quais nós fazíamos involuntariamente parte, vindos de todo o lado para impor as suas leis e utilizar aquela terra a seu bel-prazer.

África deu-nos o gosto pelo natural, pelo primitivo, pelo popular e incentivou-nos a tentar apreender o sentido oculto das coisas que nos rodeiam, a apreciar os mistérios que as mesmas escondem e a transmissão do espírito aos objectos manufacturados.
Em França, navegamos na vaga da Arte Bruta, assim baptizada por Jean Dubuffet, na Arte Singular, na Nova Invenção, na Halle Saint-Pierre em Paris e no que os anglo-saxões e, particularmente, Roger Cardinal, chamam Outsider Art. 
Os museus de “Arte Bruta” em geral e sobretudo a espantosa colecção de Jean Dubuffet, preservada em Lausana (recusada pela França e acolhida de braços abertos pela Suíça), marcou-nos profundamente. Durante duas décadas, na nossa galeria em Saint- Germain-des-Près, mostrando a “Arte Bruta” e a “Arte Singular” (movimento artístico na periferia da “Arte Bruta”), tentámos surpreender-nos e transmitir esse sentimento do inesperado aos coleccionadores de arte que nos acompanhavam e visitavam, apesar do carácter imprevisível deste tipo de artistas e da dificuldade de os enquadrar.

Desconcertante, algumas vezes indigesto, mal apreendido, o visual desta forma de arte, por falta de integração nos nossos genes e muitas vezes longe dos clichés dos nossos armazéns mentais de imagens, preenche amplamente a sua função: surpreender, perturbar, incomodar, despertar a curiosidade e o espírito de cada um, transportando-o para estéticas escarpadas e caminhos desconhecidos.

Como os homens das cavernas, da arte africana e da arte tribal, estas criações não têm como finalidade nem a decoração, nem o comércio. São monólogos, conversas com eles próprios, com o passado, com o futuro, tentativas de diálogo com os seres ou o Ser superior, longínquo, impreciso, inatingível.

Fruto do desenraizamento, das angústias, da simples loucura, da solidão ou de outros estados de alma indefinidos, as “artes marginais” cristalizam as pulsões inconscientes desses seres sensíveis, raros e indomáveis, que segregam as suas criações como a ostra à sua pérola, em obras-primas da história da humanidade e da história da arte, para se salvarem, para se curarem, ou, simplesmente, para sobreviverem.
Estes artistas, na maioria autodidactas, flutuando numa outra dimensão, constroem, com materiais fortuitos, em segredo, monumentos à inteligência, à sensibilidade e à liberdade. Jamais prisioneiros de um método, estes geniais inventores evoluem segundo as suas próprias leis, surpreendendo- nos pelo talento atípico e a impertinência das suas criações, longe da Arte Marketing, da Arte Investimento, da Arte Artesanato, da Arte Industrial, da Arte na Moda, da Arte Decoração dos “Artistas-Empresa”.

Mas o “Marketing” espreita, descarado, pronto a surfar na onda. Aliás, acho mesmo que já começou…
A arte é uma enorme porta aberta num cruzamento de mil caminhos!
Nem todos chegam ao Paraíso.
Direcção “Art Brut e Periferia”: aventura assegurada.

Antonio Saint Silvestre